14 Julho 2016
O advogado Ariel de Castro Alves é um profundo conhecedor do Estatuto da Criança e do Adolescente e “vivenciador” do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Membro da coordenação estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos e integrante do Condepe- SP (Conselho Estadual de Direitos Humanos), ele foi fundador e vice- presidente da Comissão Especial da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB.
A entrevista é de Mauro Lopes, publicada por CartaCapital, 14-07-2016.
Ariel falou na manhã de 13 de julho, quando o Estatuto completou 26 anos. Tempo de luzes e sombra: “o Brasil tem uma das legislações mais avançadas do mundo para proteger crianças e adolescentes de papel, mas é um dos piores do mundo na proteção de suas crianças e adolescentes de carne e osso.”
Eis a entrevista.
Depois de 26 anos do ECA mudou a situação das crianças e adolescentes no Brasil?
O ECA introduziu vários avanços, como a ampliação do acesso de crianças e jovens em escolas, nos ensinos fundamental e médio; a criação de Conselhos Tutelares e de Varas da Infância e Juventude; a instituição de programas de enfrentamento à exploração sexual e ao trabalho infantil. Estabeleceu obrigações dos familiares e dos poderes públicos e formas de responsabilização de gestores públicos e de familiares que não cumprem suas obrigações.
A verdade dura e triste é que boa parte do ECA não foi implementada. A lei muitas vezes não é observada e acaba sendo tratada por prefeituras, governos estaduais e pelo próprio governo federal apenas como uma carta de intenções. A destinação privilegiada de recursos prevista no ECA para programas de proteção de crianças e adolescentes é descumprida reiteradamente por todas as instâncias de governo.
Mas a própria edição do ECA foi um avanço...
Sim. Uma mudança fundamental é que sob a égide do Código de Menores, antes do ECA, vigorava o conceito de “situação irregular”. O menino de rua, a criança negligenciada educacionalmente, a menina explorada sexualmente, a criança trabalhando, o adolescente infrator, o menino vítima de tortura, entre outros exemplos de violações, estavam em “situação irregular” e deveriam ser “objeto” de intervenções dos adultos e do Estado, já que não eram considerados “sujeitos de direitos”.
Geralmente eram encaminhados para as Febems e, ao invés de serem protegidos e educados, eram punidos, ficando segregados da sociedade, independentemente de serem vítimas de violência e abandono ou autores de crimes. Com a promulgação do ECA, em situações como essas quem está irregular é a família, o Estado e toda a sociedade que não garantiram a proteção integral às crianças e aos adolescentes, colocando- os a salvo de qualquer violação de seus direitos fundamentais.
É um balanço paradoxal, não?
É um paradoxo mesmo: o Brasil tem uma das legislações mais avançadas do mundo para proteger crianças e adolescentes de papel, mas é um dos piores do mundo na proteção de suas crianças e adolescentes de carne e osso. Temos uma lei avançada, mas um país atrasado e com tradição de desrespeito aos direitos humanos mínimos da população! Prova disso são os casos recentes de violência e mortes de crianças e adolescentes. Ainda temos 29 crianças e adolescentes assassinadas por dia, conforme o último levantamento da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO).
Esse número só tem aumentado ano a ano. Em 2006, eram as crianças e adolescentes mortas 16 por dia. Somente no mês de junho desse ano duas crianças foram assassinadas por agentes do Estado na cidade de São Paulo, em circunstâncias que apresentam fortes indícios de execuções: Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira, de 10 anos, foi morto por policiais militares no dia 2 de junho; e Waldik Gabriel Silva Chagas foi assassinado por um guarda civil metropolitano no dia 25 de junho.
A onda conservadora no país afronta diretamente o ECA com a bandeira da redução da maioridade penal. O que está na origem dessa ofensiva?
O Estatuto da Criança e do Adolescente gerou avanços nos últimos anos com relação ao atendimento às crianças, mas, o atendimento aos adolescentes é uma lacuna. Os Poderes Públicos agem quase nada em educação, saúde, assistência social e profissionalização. Então é uma dessas profecias autorrealizáveis: os governos não cuidam dos adolescentes, eles ficam ao deus-dará, e fatias da sociedade em vez de cobrarem ação das autoridades voltam-se contra os jovens.
A questão é que prevenção, através de políticas sociais, custaria muito menos que a repressão.
Os governos devem cumprir o princípio constitucional da Prioridade Absoluta em seus orçamentos e com a criação dos programas e serviços especializados de atendimento dos adolescentes (e das crianças, também, claro), com foco em atendimento de famílias; enfrentar o abuso e exploração sexual; erradicar o trabalho infantil; atender os casos de drogadicção e as vítimas de maus-tratos e violência; aplicar medidas socioeducativas e programas de oportunidades e inclusão.
É preciso garantir vagas para os jovens em cursos profissionalizantes, independentemente de escolaridade e com direito a bolsas de estudos fornecidas pelo Poder Público. Além disso, é imperioso criar uma política de incentivos fiscais para as empresas que contratarem estagiários e aprendizes, principalmente entre os 14 e 21 anos. As prefeituras e empresas públicas também devem contratar esses jovens.
É disso que se trata, e não de reduzir a maioridade penal. A redução seria a decretação da completa falência dos sistemas educacionais e de proteção social do País.
Temos que prevenir; isso significa incluir e garantir oportunidades à juventude. Se o adolescente procura a escola, o serviço de atendimento para dependentes de drogas, trabalho, profissionalização e não encontra atendimento, ele pode acabar indo para o crime. O crime só inclui quando o Estado exclui.
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ECA: Uma lei avançada, uma realidade cruel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU